29.3.09

Oba, futebol

Algumas lendas dizem que os lobos procuram alguma coisa que não podemos ver ou sentir. Por isso estariam sempre em movimento: algumas espécies podem percorrer até 200km em 24 horas vigiando seu território. Se Fenrir, filho de Loki, é tido como o lobo mais importante da mitologia geral, para o ocidente é mais marcante a estátua de bronze que representa a lupa capitolina, fêmea que se destacou de sua alcateia para alimentar Rômulo e Remo, fundadores de Roma.

Séculos depois da tal amamentação, a capital não desgarrou da histórica rivalidade com o que fica ao norte, em qualquer campo em que competissem. Da cultura de verdade ao esporte como cultura. Piemonte, Ligúria e Lombardia dominavam esses cenários até o fim da década de 20, quando a lupa capitolina foi importada com a missão de rivalizar com o trio e dar ao velho Lácio um pouco de honradez nos campos.

Se a região já tinha uma representante homônima, para a loba ficou o encargo de impôr o nome de sua cidade e carregar as cores do templo de Zeus presentes em seu Capitólio. Ela podia pensar em várias formas para construir uma história tão eterna quanto a própria cidade: conquistar a Europa se envolvendo em escândalos lotéricos, conquistar a Itália se envolvendo em escândalos políticos ou ganhar os holofotes se envolvendo em escândalos administrativos.

Mas a boa visão, a audição apurada e o olfato aguçado deram à velha loba verdadeiros motivos para se eternizar, passando incólume por todas as crises. Sempre pôde perceber o que tinha às suas costas e atravessou a vida se aproveitando dos dentes afiados em maxilares fortes para caçar velhas senhoras, serpentes e águias ao lado de um ou outro lobo que chegava para compor sua temida alcateia.

Se nunca foi a mais aclamada, ao menos nunca duvidaram de sua condição de fêmea alfa e de sua principal estratégia de caça: a resistência. A loba jamais precisou de elementos-surpresa ou acelerar uma perseguição para surpreender. E sempre evitou que as caçadas se tornassem ciência exata. Porque sabe que a planificação de emoções acabaria por eliminá-las. A velha loba tem em si e por si uma fé que nunca tem fim. E que não se discute, apenas se ama.

26.3.09

Elemental

Bate perna
Batalha parada
Batida perene
Bote preso

Acende, nada
Assopra, nada
Acima, nada
Assola, nada

Olhar
Sussurrar
Abaixar
Encarar

Inspirar
Esperar
Ar
Ar

Encarar
Transpirar
Ar
Ar

Expirar
Ar
Ar
Ar

24.3.09

Geração Coca-Cola

A tampa da Coca-Cola é enrosqueada na fábrica de forma duplamente hermética. E assim permanece até sofrer alguma influência externa. Tradicionalmente, o mesmo ocorre com os humanos, seres fechados e estranhos até que alguém lhes escape o gás.

Porque o ser humano põe na roda as perguntas e previsões, as novidades e indecisões, as tragédias e o gás da Coca. E tudo isso com a tampa intacta. Porque é de seu feitio esperar que o gás escape por conta própria ao invés de pôr na roda aquilo que é capaz de lhe tirar o ar com todas aquelas suas bolhas.

Pedro tentava entender algo sem jamais ter entendido porque nunca parava de entender de tudo. E tentava fazer com que sua voz fizesse entender algo que até então não passava de um pouco do que se entendia por Pedro. Já que aquilo que tira Pedro do sério é o que lhe põe pra fora por dentro de si mesmo.

Pedro não entendia muitas vidas e então nem lhes dava valor pelo simples fato de lhe parecer que elas não lhe entendiam. O que lhe fazia sentir-se numa festa para a qual não tinha entrada, já que não havia ainda entendido que estava na sua vez de fazer os convites e que para isso fosse necessário distorcer algo - nem que fosse sua tampa de Coca-Cola.

E qual não foi sua surpresa quando acordou numa manhã anímica de domingo e durante o anêmico café-da-manhã entendeu que precisava de novos rumos para seus convites. Bastou olhar para dentro para enxergar que sua tampa de Coca-Cola era a de uma Fanta e passara tanto tempo soltando o gás do refrigerante errado.

21.3.09

Po-exígua

Era uma vez a minha noite
Era uma vez a meia vida
Era uma vez o meu ideal
Era uma vez o meio vício

Continue sendo a noite indício
Continue sendo a vida irreal
Continue sendo o ideal suicida
Continue sendo o vício açoite

Termine cálida a meia-noite
Termine sólida a minha vida
Termine gélido o meio ideal
Termine pálido o meu vício

As quatro estações

Quando não se há do que falar, sempre vale falar de sexo. Porque, queira ou não, faça ou não, provavelmente é o único tema que nunca saiu de moda e passou incólume às cruzadas, aos descobrimentos e às revoluções. Isso o torna uma instituição histórica mais sólida que a Igreja Católica, por exemplo. E é por isso que Marcos não foi para a missa de domingo e tentava convencer Daniela de que era melhor pecar em casa mesmo.

Já a dor de cabeça, provavelmente, surgiu como uma ação de contracultura às decapitações, aos enforcamentos e às fogueiras. E também atravessou ilesa todas as últimas fases históricas, atingindo mais mulheres do que homens, numa absurda proporção. E agindo como o mais eficiente anticorpo de seus organismos. E é por isso que Daniela não saiu do sofá xadrez e tentava convencer Marcos de que era melhor pedir comida chinesa, umas cervejinhas e passar a noite com algum crédito divino.

A história, portanto, fez a deontologia sexual instituir a dor de cabeça como o extremo oposto do ato em si ou de qualquer uma de suas ramificações. Disso Marcos se lamentava enquanto Daniela deixava cair no sofá xadrez um broto qualquer de bambu e enquanto o calor de Brasília esquentava uma Skol e enquanto uns homens falavam de futebol na tevê e enquanto a primeira formiga sem enxaqueca se aproveitava do molho agridoce e enquanto o que havia de mais pecaminoso naquela sala eram as imagens mentais que vinham junto dos barulhos que insistiam em chegar da parede ao lado.

E enquanto Daniela comia a primavera em rolinhos e o outono atravessava o corpo de Marcos e o verão enquadrava somente a cerveja e o inverno parecia questão de tempo, Marcos decidiu que um apartamento como o do vizinho era seu lugar. Perdeu as bases, largou as traves, pegou as chaves e pensou em se apressar.

Mas só precisou se levantar para decidir que não importava muito em que estação estava, que o que valia era fazer com que a cerveja lhe desse o que a dor de cabeça não pudera lhe dar. Porque dor de cabeça maior era deixar que uma dor de cabeça qualquer derrubasse as folhas de uma forma que nenhuma primavera pudesse chamar de volta.